terça-feira, 15 de setembro de 2015

ASSOCIATIVISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

LÍGIA HELENA LÜCHMANN ASSOCIATIVISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Em Debate, Belo Horizonte, v.3, n.4, p.44-51, dez. 2011.

ASSOCIATIVISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Associativism and democracy in contemporary Brazil

Lígia Helena Hahn Lüchmann
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
ligia@cfh.ufsc.br

Resumo: O presente artigo trata a importância da vida associativa para a democracia e mostra como o Brasil avançou nesse sentido, apresentando um quadro associativo fortalecido nas últimas décadas o que permitiu, entre outros, ganhos nas abordagens conceituais acerca do que se compreende enquanto sociedade civil. A autora propõe, ainda, uma discussão com relação à heterogeneidade no campo associativo.

Palavras-chaves: associativismo; sociedade civil; democracia.

Abstract: This article discusses the importance of associational life for democracy and shows how Brazil has advanced in this direction, with a membership strengthened in recent decades which allowed, among other things, gains in conceptual approaches about what is understood as civil society. The author also proposes a discussion regarding the heterogeneity in the associative field.

Key words: associativism; civil society; democracy.


Diferentes perspectivas teóricas ressaltam benefícios democráticos das práticas associativas, como a defesa dos grupos mais vulneráveis e excluídos, o caráter pedagógico no sentido da promoção de processos de educação política, a promoção de relações de confiança, cooperação e espírito público, as denúncias de relações de poder, ou ainda a participação na elaboração e controle de políticas públicas. Mark Warren (2001) aponta para a emergência de um consenso no interior da teoria democrática acerca da concepção Tocquevilliana da importância da vida associativa para a democracia, pelo fato de as associações serem vistas, entre outros, como cultivadoras de virtudes cívicas consideradas cruciais para uma sociedade democrática. Além disso, as associações permitem ampliar os domínios das práticas democráticas para diversas esferas da vida social, se constituindo em meios alternativos para dar voz aos desfavorecidos em função das condições desiguais de distribuição de dinheiro e poder. (WARREN, 2001; FUNG, 2003; COHEN, 1999).
No caso brasileiro, pode-se afirmar, olhando a literatura sobre o tema nas últimas décadas, que o país testemunhou a emergência de um quadro associativo vigoroso e diversificado. O acúmulo de pesquisas sobre essa temática propiciou a sistematização de alguns balanços mais abrangentes23 que apresentam as diferentes fases na trajetória (histórica e teórica) das ações coletivas no país, ressaltando o surgimento de um novo associativismo (AVRITZER, 1997) durante os anos de 1970 que rompe com os padrões tradicionais – caracterizados pela homogeneidade e pela baixa densidade – na constituição de um processo de pluralização, de aumento “no ritmo, no número e nos tipos de associações existentes” (AVRITZER, 1997, p. 168). Os anos de 1980 marcam um pico na constituição de diversas associações e movimentos sociais que desencadeiam diferentes mobilizações e reivindicações, como as questões urbanas, de gênero, de sexualidade, ambientais, culminando com articulações mais gerais, como as de defesa de uma Constituição pautada por princípios de participação e de justiça social.
A década de 1990 vai trazer novas características nas práticas associativas do país. Por um lado, como analisado em Scherer-Warren e Lüchmann (2004), o ímpeto do processo de globalização e a realização de inúmeras Conferências Mundiais das Nações Unidas24 veio ampliando a interlocução entre os movimentos sociais e colocando novos desafios analíticos em função das articulações de

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23 Doimo (1995), Gohn (1997), Avritzer (1997). Sobre os Movimentos Sociais Urbanos ver Kowarick (1987) e Machado da Silva (1986).
24 Conferências: Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio/92); Direitos Humanos (Viena/93); População e Desenvolvimento (Cairo/94); Desenvolvimento Social (Copenhague/95); Mulher (Beijing/95); Hábitat II (Istambul/96). Sobre a relação entre sociedade civil e as Nações Unidas, vide Liszt Vieira (2001).

fóruns locais, regionais, nacionais e internacionais. Surgiram também outros coletivos com novas preocupações, a exemplo dos movimentos contra a violência (GOHN, 2003), e muitas novas ONGs nas várias áreas temáticas, resultantes do estímulo às parcerias entre sociedade civil e o poder público. A abordagem de redes passou a tomar corpo no interior das análises sobre os movimentos sociais, devido não apenas às características articulatórias crescentes nesse campo associativo25, como às novas formas de institucionalidade e as novas sociabilidades decorrentes das lógicas de cooperação solidária que passaram a ser estimuladas entre organizações voluntárias, pastorais, etc. Por outro lado, a participação da sociedade civil nos espaços de gestão das políticas públicas, como os Conselhos Gestores, as Conferências, as experiências de Orçamento Participativo (entre outros) têm impactado e complexificado as práticas, orientações e repertórios de diversos setores do campo associativo. 

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25 Vide os primeiros desdobramentos dessa abordagem em Doimo (1995); Scherer-Warren (1993).

Assim é que, nos anos 1990, uma importante parte dos estudos e pesquisas passam a incorporar uma perspectiva teórica sobre a importância das organizações da sociedade civil para a democracia que, de acordo com Nogueira (2003) teve como base um conjunto de fatores, entre eles: a complexificação, diferenciação e fragmentação das sociedades contemporâneas que vêm testemunhando a diminuição do peso político da classe operária e registrando a emergência de novos sujeitos coletivos; o processo de globalização que proporcionou, entre outros, uma maior transparência e autonomia do social frente à institucionalidade política; e a suposta crise da democracia representativa com impactos negativos no “funcionamento e identidade dos partidos políticos de esquerda, já abalados pela dificuldade de reprodução dos sujeitos sociais „clássicos e pela diminuição do sentido das grandes utopias políticas” (2003, p. 188). A introdução de estruturas participativas, como os Conselhos Gestores no Brasil, por exemplo, constitui-se como um ingrediente a mais na valorização da sociedade civil, considerada portadora legítima dos genuínos interesses sociais.26


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26 Como analisam Gurza Lavalle, Houtzager e Castello (2006, p.46), a representação da sociedade civil está imbuída da ideia de que os seus atores “emergem em continuidade ou animados por uma conexão genuína com o tecido social – ou mundo da vida, como se queira. Essa continuidade pressuposta tende a dissipar a formulação de questões como em nome de quem e mediante quais mecanismos de controle e responsividade representam as organizações civis”.

Nesse processo de incorporação do conceito de sociedade civil, ganha destaque a concepção habermasiana (COHEN e ARATO, 1992; HABERMAS, 1997) caracterizada como esfera social portadora por excelência dos potenciais de racionalidade comunicativa, constituindo-se como um conjunto de associações e movimentos sociais que se diferenciam dos partidos e outras instituições políticas (uma vez que não estão organizados tendo em vista a conquista do poder), bem como dos agentes e instituições econômicas (não estão diretamente associados à competição no mercado). Pluralismo, autonomia, solidariedade e influências/impactos na esfera pública figuram como características centrais desta concepção de sociedade civil que, identificando-se como modelo utópico auto-limitado, procura compatibilizar o núcleo normativo da teoria da democracia com as complexas e diferenciadas estruturas da modernidade.
Mais recentemente, os limites dessa frente teórica vão dando o tom nos debates sobre o tema do associativismo e dos movimentos sociais. De fato, a ampliação e pluralização das ONGs e de organizações formais no estabelecimento de parcerias com o Estado e o mercado, a criação (e generalização) dos espaços de participação social na gestão de políticas públicas, as diversas relações e articulações entre associações/movimentos sociais e atores/instituições políticas e governamentais, a atuação em forma de redes, são, entre outras, constitutivas de dinâmicas que requerem o desenvolvimento de estudos que qualifiquem estas relações, estudos que, como afirmam Gurza Lavalle, Castello e Bichir (2008), “não excluem nem substituem a teoria normativa, mas informam-na de modo a torná-la menos ingênua e a favorecer sua aderência às questões trazidas pela sistematização e acumulação de conhecimento empírico do mundo” (p. 74).
Com efeito, as evidências empíricas vêm mostrando, entre outros, a heterogeneidade de objetivos, interesses e formas de organização; os vínculos e relações com o sistema político; as influências do contexto na atuação e formulação política destes sujeitos coletivos, desautorizando uma leitura que imprime uma natureza necessariamente democrática desse campo. No que diz respeito às relações com o sistema político, Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) chamam a atenção para os diferentes tipos de relacionamento, sendo que a “heterogeneidade da sociedade civil e do Estado configura um mapa extraordinariamente complexo de possibilidades de colaboração e confronto” (p. 38). Goldstone (2003) analisa como os movimentos sociais apresentam, em muitos casos, fronteiras imprecisas e permeáveis com as instituições políticas. Líderes e integrantes de movimentos sociais disputam eleições, ocupam cargos em governos, apoiam – e até se tornam – partidos, configurando um mosaico com diferentes alinhamentos, estratégias e articulações. Associações e movimentos sociais, adotam, portanto, diferentes repertórios de ação política e social de acordo com as suas demandas, os espaços e aliados institucionais disponíveis, os seus objetivos.
Quanto à heterogeneidade no campo associativo, cabe aqui tecer duas observações: em primeiro lugar, os limites dos recortes teóricos, como teorias da sociedade civil e dos movimentos sociais, por exemplo, que excluem uma variedade de práticas associativas, seja por serem mais estruturadas e hierarquizadas; seja por sua configuração, digamos, menos pública, a exemplo de grupos de idosos e clubes sociais. Em segundo lugar, o alto grau de generalização acerca dos impactos democráticos das associações, sem maiores cuidados no que se refere à necessidade de se especificar, no interior desse campo complexo e plural, os diferentes tipos de associações e seus diferentes, e muitas vezes contraditórios, efeitos democráticos. Vários autores (PAXTON, 2002; STOLLE; ROCHON, 1998; BAGGETTA, 2009;FUNG, 2003; CHAMBERS; KOPSTEIN, 2006) vêm se dedicando a desagregar os diferentes tipos de associações, com destaque para o trabalho já citado de Warren (2001). Entra aqui o reconhecimento de que muitas associações não são boas para a democracia, como determinados grupos privados, grupos racistas, de ódio, e muitos grupos de interesses poderosos que fazem jus às suspeitas de facçiosismo levantadas por Madison e Rousseau em suas preocupações com o ideal do bem comum (WARREN, 2001, p. 10). Gurza Lavalle, Castello e Bichir (2008) apontam para o fato de que “pouco sabemos, por exemplo, das hierarquias internas e da capacidade de ação desiguais das organizações civis, da sua diferenciação funcional e das clivagens políticas e conflitos internos, em suma, do modus operandi da sociedade civil” (p. 73).
O problema de generalizar não é apenas o de apontar benefícios democráticos onde eles não existem, como alega Warren, mas o de não enxergar efeitos democráticos em associações que são descartadas a priori em função de perspectivas teóricas e ideológicas27. Além disso, as “associações podem provocar efeitos democráticos similares por razões diferentes” (WARREN, 2001, p.141), ou, ao contrário, associações similares provocarem resultados diferentes. São criadas por indivíduos e setores sociais, econômicos e políticos, obedecendo interesses variados e constrastantes, seja para a reprodução ou para mudança social, para a manutenção ou para a alteração das relações de poder. Há, portanto, importantes desigualdades, conflitos e relações de poder no interior do campo associativo. Práticas associativas e participação política podem mascarar, em nome da “comunalidade”, condições e interesses antidemocráticos. (WARREN, 2001). Os riscos de manipulação e de monopolização em função de recursos vinculados a dinheiro, poder e prestígio são constitutivos desta complexidade social.

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27 Um exemplo interessante é o estudo de Baggetta (2009) sobre os grupos de corais nos EUA. Mesmo sendo grupos com objetivos bem específicos e distantes de estarem voltados para a criação de oportunidades cívicas, estes grupos apresentam importante potencial para tal, ao promoverem interação, experiência gerencial e conexão com outras instituições

 Frente a variedade desse fenômeno, portanto, os potenciais benefícios democráticos das associações necessitam ser testados empiricamente, considerando-se os diferentes contextos políticos, sociais e culturais. Enfim, entender as configurações do campo associativo requer que se olhe para além das associações, ao mesmo tempo que se identifique os recursos, os atores, as propostas e as dinâmicas das práticas associativas em suas diferentes relações e articulações, se quisermos avançar nos estudos acerca dos potenciais democráticos das associações.

Em Debate, Belo Horizonte, v.3, n.4, p.44-51, dez. 2011.

Referências

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