LÍGIA HELENA LÜCHMANN
ASSOCIATIVISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Em Debate, Belo Horizonte,
v.3, n.4, p.44-51, dez. 2011.
ASSOCIATIVISMO
E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Associativism and democracy in contemporary Brazil
Lígia Helena Hahn Lüchmann
Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC)
ligia@cfh.ufsc.br
Resumo:
O presente artigo trata a
importância da vida associativa para a democracia e mostra como o Brasil
avançou nesse sentido, apresentando um quadro associativo fortalecido nas
últimas décadas o que permitiu, entre outros, ganhos nas abordagens conceituais
acerca do que se compreende enquanto sociedade civil. A autora propõe, ainda,
uma discussão com relação à heterogeneidade no campo associativo.
Palavras-chaves: associativismo; sociedade civil; democracia.
Abstract: This article
discusses the importance of associational life for democracy and shows how
Brazil has advanced in this direction, with a membership strengthened in recent
decades which allowed, among other things, gains in conceptual approaches about
what is understood as civil society. The author also proposes a discussion
regarding the heterogeneity in the associative field.
Key words: associativism; civil society; democracy.
Diferentes
perspectivas teóricas ressaltam benefícios democráticos das práticas
associativas, como a defesa dos grupos mais vulneráveis e excluídos, o caráter
pedagógico no sentido da promoção de processos de educação política, a promoção
de relações de confiança, cooperação e espírito público, as denúncias de
relações de poder, ou ainda a participação na elaboração e controle de
políticas públicas. Mark Warren (2001) aponta para a emergência de um consenso
no interior da teoria democrática acerca da concepção Tocquevilliana da importância
da vida associativa para a democracia, pelo fato de as associações serem
vistas, entre outros, como cultivadoras de virtudes cívicas consideradas
cruciais para uma sociedade democrática. Além disso, as associações
permitem ampliar os domínios das práticas democráticas para diversas esferas da
vida social, se constituindo em meios alternativos para dar voz aos desfavorecidos
em função das condições desiguais de distribuição de dinheiro e poder. (WARREN,
2001; FUNG, 2003; COHEN, 1999).
No
caso brasileiro, pode-se afirmar, olhando a literatura sobre o tema nas últimas
décadas, que o país testemunhou a emergência de um quadro associativo vigoroso
e diversificado. O acúmulo de pesquisas sobre essa temática propiciou a
sistematização de alguns balanços mais abrangentes23 que apresentam
as diferentes fases na trajetória (histórica e teórica) das ações coletivas no
país, ressaltando o surgimento de um novo associativismo (AVRITZER, 1997)
durante os anos de 1970 que rompe com os padrões tradicionais – caracterizados
pela homogeneidade e pela baixa densidade – na constituição de um processo de
pluralização, de aumento “no ritmo, no número e nos tipos de associações
existentes” (AVRITZER, 1997, p. 168). Os anos de 1980 marcam um pico na
constituição de diversas associações e movimentos sociais que desencadeiam
diferentes mobilizações e reivindicações, como as questões urbanas, de gênero,
de sexualidade, ambientais, culminando com articulações mais gerais, como as de
defesa de uma Constituição pautada por princípios de participação e de justiça
social.
A
década de 1990 vai trazer novas características nas práticas associativas do
país. Por um lado, como analisado em Scherer-Warren e Lüchmann (2004), o ímpeto
do processo de globalização e a realização de inúmeras Conferências Mundiais
das Nações Unidas24 veio ampliando a interlocução entre os movimentos
sociais e colocando novos desafios analíticos em função das articulações de
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23 Doimo (1995), Gohn (1997),
Avritzer (1997). Sobre os Movimentos Sociais Urbanos ver Kowarick (1987) e
Machado da Silva (1986).
24 Conferências: Meio Ambiente e
Desenvolvimento (Rio/92); Direitos Humanos (Viena/93); População e
Desenvolvimento (Cairo/94); Desenvolvimento Social (Copenhague/95); Mulher
(Beijing/95); Hábitat II (Istambul/96). Sobre a relação entre sociedade civil e
as Nações Unidas, vide Liszt Vieira (2001).
fóruns locais, regionais, nacionais e internacionais.
Surgiram também outros coletivos com novas preocupações, a exemplo dos
movimentos contra a violência (GOHN, 2003), e muitas novas ONGs nas várias
áreas temáticas, resultantes do estímulo às parcerias entre sociedade civil e o
poder público. A abordagem de redes passou a tomar corpo no interior das
análises sobre os movimentos sociais, devido não apenas às características
articulatórias crescentes nesse campo associativo25, como às novas formas de
institucionalidade e as novas sociabilidades decorrentes das lógicas de
cooperação solidária que passaram a ser estimuladas entre organizações
voluntárias, pastorais, etc. Por outro lado, a participação da sociedade civil
nos espaços de gestão das políticas públicas, como os Conselhos Gestores, as
Conferências, as experiências de Orçamento Participativo (entre outros) têm
impactado e complexificado as práticas, orientações e repertórios de diversos
setores do campo associativo.
_____________________________
25 Vide os primeiros desdobramentos
dessa abordagem em Doimo (1995); Scherer-Warren (1993).
Assim
é que, nos anos 1990, uma importante parte dos estudos e pesquisas passam a
incorporar uma perspectiva teórica sobre a importância das organizações da
sociedade civil para a democracia que, de acordo com Nogueira (2003) teve como
base um conjunto de fatores, entre eles: a complexificação, diferenciação e
fragmentação das sociedades contemporâneas que vêm testemunhando a diminuição
do peso político da classe operária e registrando a emergência de novos
sujeitos coletivos; o processo de globalização que proporcionou, entre outros,
uma maior transparência e autonomia do social frente à institucionalidade
política; e a suposta crise da democracia representativa com impactos negativos
no “funcionamento e identidade dos partidos políticos de esquerda, já abalados
pela dificuldade de reprodução dos sujeitos sociais „clássicos‟ e pela diminuição do sentido das grandes utopias
políticas” (2003, p. 188). A introdução de estruturas participativas, como os
Conselhos Gestores no Brasil, por exemplo, constitui-se como
um ingrediente a mais na valorização da sociedade civil, considerada portadora
legítima dos genuínos interesses sociais.26
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26 Como analisam Gurza Lavalle,
Houtzager e Castello (2006, p.46), a representação da sociedade civil está
imbuída da ideia de que os seus atores “emergem em continuidade ou animados por
uma conexão genuína com o tecido social – ou mundo da vida, como se queira.
Essa continuidade pressuposta tende a dissipar a formulação de questões como em
nome de quem e mediante quais mecanismos de controle e responsividade
representam as organizações civis”.
Nesse
processo de incorporação do conceito de sociedade civil, ganha destaque a
concepção habermasiana (COHEN e ARATO, 1992; HABERMAS, 1997) caracterizada como
esfera social portadora por excelência dos potenciais de racionalidade
comunicativa, constituindo-se como um conjunto de associações e movimentos
sociais que se diferenciam dos partidos e outras instituições políticas (uma
vez que não estão organizados tendo em vista a conquista do poder), bem como
dos agentes e instituições econômicas (não estão diretamente associados à
competição no mercado). Pluralismo, autonomia, solidariedade e
influências/impactos na esfera pública figuram como características centrais
desta concepção de sociedade civil que, identificando-se como modelo utópico
auto-limitado, procura compatibilizar o núcleo normativo da teoria da
democracia com as complexas e diferenciadas estruturas da modernidade.
Mais
recentemente, os limites dessa frente teórica vão dando o tom nos debates sobre
o tema do associativismo e dos movimentos sociais. De fato, a ampliação e
pluralização das ONGs e de organizações formais no estabelecimento de parcerias
com o Estado e o mercado, a criação (e generalização) dos espaços de
participação social na gestão de políticas públicas, as diversas relações e
articulações entre associações/movimentos sociais e atores/instituições
políticas e governamentais, a atuação em forma de redes, são, entre outras,
constitutivas de dinâmicas que requerem o desenvolvimento de estudos que
qualifiquem estas relações, estudos que, como afirmam Gurza Lavalle, Castello e
Bichir (2008), “não excluem nem substituem a teoria normativa, mas informam-na
de modo a torná-la menos ingênua e a favorecer sua aderência às questões
trazidas pela sistematização e acumulação de conhecimento empírico do mundo”
(p. 74).
Com
efeito, as evidências empíricas vêm mostrando, entre outros, a heterogeneidade
de objetivos, interesses e formas de organização; os vínculos e relações com o
sistema político; as influências do contexto na atuação e formulação política destes
sujeitos coletivos, desautorizando uma leitura que imprime uma natureza
necessariamente democrática desse campo. No que diz respeito às relações com o
sistema político, Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) chamam a atenção para os
diferentes tipos de relacionamento, sendo que a “heterogeneidade da sociedade
civil e do Estado configura um mapa extraordinariamente complexo de
possibilidades de colaboração e confronto” (p. 38). Goldstone (2003) analisa
como os movimentos sociais apresentam, em muitos casos, fronteiras imprecisas e
permeáveis com as instituições políticas. Líderes e integrantes de movimentos
sociais disputam eleições, ocupam cargos em governos, apoiam – e até se tornam
– partidos, configurando um mosaico com diferentes alinhamentos, estratégias e
articulações. Associações e movimentos sociais, adotam, portanto, diferentes
repertórios de ação política e social de acordo com as suas demandas, os
espaços e aliados institucionais disponíveis, os seus objetivos.
Quanto
à heterogeneidade no campo associativo, cabe aqui tecer duas observações: em
primeiro lugar, os limites dos recortes teóricos, como teorias da sociedade
civil e dos movimentos sociais, por exemplo, que excluem uma variedade de
práticas associativas, seja por serem mais estruturadas e hierarquizadas; seja
por sua configuração, digamos, menos pública, a exemplo de grupos de idosos e
clubes sociais. Em segundo lugar, o alto grau de generalização acerca dos
impactos democráticos das associações, sem maiores cuidados no que se refere à necessidade
de se especificar, no interior desse campo complexo e plural, os diferentes
tipos de associações e seus diferentes, e muitas vezes contraditórios, efeitos
democráticos. Vários autores (PAXTON, 2002; STOLLE; ROCHON, 1998; BAGGETTA,
2009;FUNG, 2003; CHAMBERS; KOPSTEIN, 2006) vêm se dedicando
a desagregar os diferentes tipos de associações, com destaque para o trabalho
já citado de Warren (2001). Entra aqui o reconhecimento de que muitas
associações não são boas para a democracia, como determinados grupos privados,
grupos racistas, de ódio, e muitos grupos de interesses poderosos que fazem jus
às suspeitas de facçiosismo levantadas por Madison e Rousseau em suas
preocupações com o ideal do bem comum (WARREN, 2001, p. 10). Gurza Lavalle,
Castello e Bichir (2008) apontam para o fato de que “pouco sabemos, por
exemplo, das hierarquias internas e da capacidade de ação desiguais das
organizações civis, da sua diferenciação funcional e das clivagens políticas e
conflitos internos, em suma, do modus operandi da sociedade civil” (p. 73).
O
problema de generalizar não é apenas o de apontar benefícios democráticos onde
eles não existem, como alega Warren, mas o de não enxergar efeitos democráticos
em associações que são descartadas a priori em função de perspectivas teóricas
e ideológicas27. Além disso, as “associações podem provocar efeitos
democráticos similares por razões diferentes” (WARREN, 2001, p.141), ou, ao
contrário, associações similares provocarem resultados diferentes. São criadas
por indivíduos e setores sociais, econômicos e políticos, obedecendo interesses
variados e constrastantes, seja para a reprodução ou para mudança social, para
a manutenção ou para a alteração das relações de poder. Há, portanto,
importantes desigualdades, conflitos e relações de poder no interior do campo
associativo. Práticas associativas e participação política podem mascarar, em
nome da “comunalidade”, condições e interesses antidemocráticos. (WARREN,
2001). Os riscos de manipulação e de monopolização em função de recursos
vinculados a dinheiro, poder e prestígio são constitutivos desta complexidade
social.
______________________________
27 Um exemplo interessante é o estudo
de Baggetta (2009) sobre os grupos de corais nos EUA. Mesmo sendo grupos com
objetivos bem específicos e distantes de estarem voltados para a criação de
oportunidades cívicas, estes grupos apresentam importante potencial para tal,
ao promoverem interação, experiência gerencial e conexão com outras
instituições
Frente a variedade desse fenômeno, portanto, os
potenciais benefícios democráticos das associações necessitam ser testados
empiricamente, considerando-se os diferentes contextos políticos, sociais e
culturais. Enfim, entender as configurações do campo associativo requer que se
olhe para além das associações, ao mesmo tempo que se identifique os recursos,
os atores, as propostas e as dinâmicas das práticas associativas em suas
diferentes relações e articulações, se quisermos avançar nos estudos acerca dos
potenciais democráticos das associações.
Em Debate, Belo Horizonte, v.3, n.4, p.44-51, dez.
2011.
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LÍGIA HELENA LÜCHMANN ASSOCIATIVISMO E
DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Em Debate, Belo Horizonte, v.3, n.4,
p.44-51, dez. 2011.
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