ENTREVISTA
Emilia Ferreiro: ''O momento atual é interessante porque põe a escola em crise''
Segundo Emilia Ferreiro, as mudanças tecnológicas e sociais trouxeram maiores exigências ao trabalho de alfabetização
Márcio Ferrari (novaescola@fvc.org.br)
http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-inicial/momento-atual-423395.shtml
EMÍLIA FERREIRO "As primeiras tentativas já não são vistas como rabiscos, mas uma espécie de escrita"
Leia abaixo a entrevista concedida pela psicolinguista argentina Emilia Ferreiro a NOVA ESCOLA em outubro de 2006. Emilia esteve em São Paulo para participar da 1ª Semana Victor Civita de Educação.
Aqui ela avalia as mudanças ocorridas
nas práticas de leitura e escrita nas últimas décadas, como consequência
sobretudo das inovações tecnológicas no campo da informática.
Como se alteraram as concepções de alfabetização nestes quase 30
anos desde que foi publicado seu livro Psicogênese da Língua Escrita?
EMILIA FERREIRO Mudou a concepção social do
alfabetizado. O que se requer de uma pessoa alfabetizada hoje em dia é bem
diferente do que em meados do século 20. Não é mais suficiente saber assinar o
nome e conseguir ler instruções simples, como era na época da Segunda Guerra
Mundial. Do ponto de vista dos usos sociais da escrita no mundo contemporâneo,
temos uma complexidade cada vez maior. As circunstâncias de uso de leitura se
tornaram muito frequentes e variadas. O que não mudou é o tipo de esforço
cognitivo exigido por esse sistema de marcas que a sociedade apresenta em
espaços muito variados e a instituição escolar é obrigada a transmitir. O
problema da relação entre essas marcas escritas e a língua oral continua sendo
um mistério total nos primeiros momentos da alfabetização.
E quanto ao ensino?
EMILIA Uma mudança
positiva é que já não se consideram as produções das crianças de 4 ou 5 anos
como tentativas erradas ou rabiscos, a exemplo do que se dizia antigamente, mas
sim como uma espécie de escrita. Parece-me que agora há uma atitude positiva,
como sempre houve em relação aos primeiros desenhos. Outro avanço tem a ver com
não se assustar quando crianças pequenas querem escrever. Antes elas eram
desestimuladas porque se achava que não "estavam na idade". Também se
reconhece a importância de ler em voz alta para elas desde muito cedo. Já se
sabe que existe uma diferença grande entre ler e contar uma história. Há um
pequeno avanço - não tanto quanto deveria haver - na prática de ler textos
distintos e na valorização da biblioteca de sala de aula. A simples atividade
de ordenar os livros com as crianças, usando critérios múltiplos, já as
aproxima muito da leitura e enriquece a escrita.
As coisas estão melhorando,
então?
EMILIA Evidentemente estou dando uma
visão muito positiva. Sei que há um grande número de professores tradicionais
que não mudaram nada e continuam usando cartilhas dos anos 1920 e 1930. A
instituição escolar é muito conservadora, muda com dificuldade. O importante é
ter consciência de que ela não está definida para sempre. O que ocorre fora a
afeta e ela não pode fechar os olhos. Este é um momento interessante pelo
avanço tecnológico, que põe a escola um pouco em crise. Existem coisas que
poderiam ter constituído avanço, porém foram muito mal compreendidas, como
acreditar que os níveis de conceitualização da leitura pela criança mudam por
si mesmas e que não é preciso ensinar, apenas deixar que ela construa seu
conhecimento sozinha.
As novas tecnologias trouxeram
mudanças importantes?
EMILIA Sim, se aceitarmos
que o conceito de alfabetização não é fixo, mas uma construção histórica que
muda conforme se alteram as exigências sociais e as tecnologias de produção de
texto. Os novos meios entram não somente na vida profissional, mas no cotidiano
pessoal. Permitem ler e produzir textos e também fazê-los circular de maneira
absolutamente inédita. No ano passado a Western Union, empresa que tinha o
monopólio dos telegramas nos Estados Unidos, anunciou em sua página da internet
que estava extinguindo esse serviço. Os telegramas tiveram muita importância no
século 20, anunciando contratações, demissões, nascimentos e mortes - agora
simplesmente não existem mais. Vemos então a desaparição de certos gêneros e a
aparição de outros. O texto de email, por exemplo, não tem regras definidas.
Não é como uma carta formal: podemos dizer se ela está bem escrita ou não,
porque há um paradigma claro para isso. Quanto ao correio eletrônico, não.
Algumas pessoas começam tradicionalmente, escrevendo "querido fulano",
dois pontos, e continuam abaixo. Como se fosse uma carta formal. Muitos começam
com "olá" ou mesmo sem nenhuma introdução - vai-se diretamente para o
texto da mensagem. Tampouco se sabe como terminar. Alguns põem o nome; outros
não, porque já está escrito no cabeçalho. É uma espécie de escrita selvagem.
Não está normatizada e se prolifera. É difícil dizer se acabará constituindo um
estilo.
O que significa, então, estar
alfabetizado hoje?
Emilia Ferreiro: É poder transitar
com eficiência e sem temor numa intrincada trama de práticas sociais ligadas à
escrita. Ou seja, trata-se de produzir textos nos suportes que a cultura define
como adequados para as diferentes práticas, interpretar textos de variados graus
de dificuldade em virtude de propósitos igualmente variados, buscar e obter
diversos tipos de dados em papel ou tela e também, não se pode esquecer,
apreciar a beleza e a inteligência de um certo modo de composição, de um certo
ordenamento peculiar das palavras que encerra a beleza da obra literária. Se
algo parecido com isso é estar alfabetizado hoje em dia, fica claro por que tem
sido tão difícil. Não é uma tarefa para se cumprir em um ano, mas ao longo da
escolaridade. Quanto mais cedo começar, melhor.
E possível dizer quando termina?
EMILIA Difícil... Eu tenho duas
classes de pós-graduação e continuo alfabetizando meus alunos, porque é a
primeira vez que enfrentam um certo tipo de texto que apenas a literatura
especializada produz e é difícil de ler. Além disso, eles têm de escrever um
objeto denominado tese, que também não é fácil de escrever, primeiro porque é
algo que se produz apenas uma ou duas vezes na vida e nunca mais; segundo
porque é uma combinação de texto descritivo e argumentativo, com
características próprias. Ler fazendo uma pesquisa na internet é um modo
particular de ler, tirando informações e tomando decisões rapidamente. Os
tempos de utilização da internet podem ser prolongados, mas o mais comum é que
se faça um uso ágil. Não é o mesmo que entrar numa biblioteca. A quantidade de
erros de ortografia que se registram nos emails é enorme. Isso porque a
utilização é muito rápida e não costuma exigir correção. Escreve-se e manda-se.
Se for necessário dizer mais alguma coisa, manda-se outro.
No Brasil, os adolescentes
criaram todo um código para se comunicar pela internet.
EMILIA Isso acontece em toda
parte; é um fenômeno muito generalizado. Uma vez mais, não sabemos se é uma
tendência importante ou se passará sem deixar marcas. O certo é que eles estão
fazendo com a escrita um jogo muito divertido. É uma transgressão, mas para
isso é preciso conhecer alguma coisa da escrita. Porque afinal alguém tem que
receber essa mensagem e ler, ou seja, é preciso dar pistas para ser entendido.
Um dado curioso é que o uso generalizado da letra K nesse tipo de mensagem
parece quase obrigatório. Acontece também em espanhol, no qual o K é tão raro
quanto em português. E também é um recurso das crianças nas fases iniciais da
alfabetização. A letra K sempre tem o mesmo som, enquanto a letra C não é
confiável, tem muitos sons diferentes. Então as crianças ficam mais seguras
usando o K.
O e-mail incentiva a prática da
escrita?
EMILIA Acho que sim.
Talvez não se leiam tantos livros atualmente, mas há mais ocasiões de praticar
a leitura e a escrita do que antes. Quando são feitas pesquisas acerca do
comportamento leitor de uma população, a pergunta inevitável é: "Quantos
livros leu no último ano?" Os resultados na América Latina costumam ser
lamentáveis, mas não se pode tirar imediatamente a conclusão de que, no geral,
se lê menos. Certamente a leitura de um livro e do resultado de uma partida de
futebol numa página da web não são equivalentes em termos de esforço leitor;
são práticas muito diferentes.
Isso pode levar a um maior
interesse pela leitura em geral, que acabe se refletindo na leitura de livros?
EMILIA Talvez, mas
seguramente não há uma relação de causa e efeito. Na medida em que alguém
pratica mais, torna-se mais competente e quem sabe possa atrever-se a outros
gêneros, suportes e obras frente aos quais antes tinha uma atitude de rechaço
ou temor. O que é importante distinguir é que sob o verbo ler estamos agrupando
muitos tipos de leitura e o mesmo vale para o verbo escrever. Pelo lado de quem
lê ou escreve, há diversidade de propósitos, de circunstâncias, de tempo de
organização. E pelo lado daquilo que se lê e se escreve - ou seja, os gêneros -
também há diversidade e deve-se incluir agora os emails, os chats etc. Por isso
é tão ambíguo o discurso sobre a introdução das tecnologias no âmbito escolar.
O professor não sabe bem o que fazer com ele. Então inventou-se a sala de
informática, freqüentada apenas em horários determinados. É uma maneira de não
incluir o computador na atividade cotidiana. A introdução dos computadores na
escola é mais uma manobra econômica do que uma necessidade pedagógica sentida
como tal.
Muitas escolas têm computadores não conectados à internet.
Costuma-se dizer que não servem para nada.
EMILIA Ao contrário, são muito
úteis. A escola sempre trabalhou mal a revisão de texto e os alunos sempre
odiaram fazê-la, porque num texto à mão as correções deixam um aspecto
horrível. E é preciso passar a limpo, voltar a escrever tudo. Com um
processador de texto, a revisão se torna um jogo: experimentamos suprimir
trechos ou mudá-los de lugar, com a possibilidade de desfazer se não ficar bom.
Depois de muitíssimas intervenções, o que temos na tela é um texto limpo,
pronto para ser impresso. A revisão é fundamental para
que as crianças assumam a responsabilidade pela correção e
clareza do que escrevem. E com o processador de texto elas podem trabalhar
também com uma coisa que nunca trabalharam, o formato: largura das linhas,
mudanças tipográficas, sublinhamento, manipulação do tamanho das letras etc.
Os computadores podem ser mais um
estímulo para a alfabetização?
EMILIA Nos lugares em
que as crianças têm computadores em casa, o fato de haver na escola não fascina
muito, embora elas possam descobrir novos usos ao trabalhar em grupos na sala
de aula. Mas nas camadas mais desfavorecidas da população os computadores
possuem mais atrativos, porque todos sabem que é um objeto muito valorizado
socialmente e tem múltiplos usos possíveis. O problema é que os computadores
necessitam de suporte técnico e, quando são instalados na escola, ninguém se lembra
disso. Portanto, muitas vezes as máquinas estão lá, só que inutilizadas.
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