terça-feira, 23 de dezembro de 2014

CONCEPÇÕES DA EJA

DIFERENTES CONCEPÇÕES DA EJA NA FORMAÇÃO E NAS PRÁTICAS DE SEUS SUJEITOS

Autor: Luís Fernando Monteiro Mileto
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro
Universidade Federal Fluminense


O principal objetivo do presente trabalho é estimular reflexões sobre a existência de diferentes concepções de Educação de Jovens e Adultos coexistindo em suas propostas institucionais de escolarização, conseqüentemente, disputando posições nesse campo.
Proponho a construção de uma classificação na qual figuram três tendências predominantes que serviriam como parâmetros para a análise das concepções de EJA. Os fundamentos dessa construção teórica originaram-se em observações e diálogos com educadores e em entrevistas com alunos da EJA ocorridas durante o processo de pesquisa desenvolvido para a realização da minha dissertação de mestrado intitulada No mesmo barco, um ajuda o outro a não desistir – estratégias e trajetórias de permanência na EJA (MILETO, 2009). Essa dissertação de mestrado teve como objetivo investigar os diferentes fatores que incidiram sobre a decisão dos sujeitos em permanecer ou desistir do processo de escolarização propiciado pelo Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA) em uma escola da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, na qual trabalho como professor desde 2004, e que se tornou, simultaneamente, um campo de pesquisa. O PEJA é a proposta pedagógica para a Educação de Jovens e Adultos existente na rede pública de educação do município do Rio de Janeiro.
Na primeira parte do artigo apresento a proposta de uma classificação das concepções sobre a EJA, simultaneamente, destaco às limitações inerentes a toda construção classificatória. Em seguida, descrevo sinteticamente duas das três concepções ou tendências dominantes. Ainda nessa parte, analiso as concepções descritas, estabelecendo relações com suas expressões ideológicas que se manifestam em práticas de ensino na EJA.
Como encaminhamento conclusivo delineio, ao descrever a concepção denominada “EJA: os desafios da construção coletiva”, algumas questões para o aprofundamento da reflexão sobre as necessidades de construção de práticas educativas na EJA que possibilitem a participação social mais ativa dos seus sujeitos. Tendências predominantes ou concepções de EJA Para analisar a EJA no contexto histórico da educação brasileira contemporânea, em cursos presenciais escolares com avaliação durante o processo formativo, proponho como recurso interpretativo classificar as concepções relativas a EJA em três tendências predominantes: “A EJA na lógica do atalho”, “EJA como direito mutilado” e “EJA, desafios da construção coletiva”. É imprescindível assinalar que as referências a EJA contidas nas expressões “lógica do atalho” e “direito mutilado” foram retiradas da palestra proferida pelo professor Gaudêncio Frigotto na II Jornada de Educação de Jovens e Adultos em novembro de 2007 na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense e, posteriormente, realizei a partir da minha perspectiva o seu desenvolvimento analítico durante os estudos da pesquisa para a conclusão do Curso de Mestrado. O fundamento principal para classificar os depoimentos e/ou as práticas educativas em uma das três tendências predominantes propostas foi a forma como foi explicitada a percepção do objetivo social da EJA. Devo assinalar que tenho plena consciência que ocorrerão operações conceituais e analíticas que implicarão no empobrecimento da complexidade do real, sendo essa deficiência uma característica inevitável e inerente às classificações e/ou tipologias. EJA na lógica do atalho Esta primeira concepção caracteriza-se pela ênfase quase exclusiva nos processos de certificação e pela insipiência ou pela total ausência de apropriação e valorização das experiências culturais vivenciadas pelos sujeitos jovens e adultos presentes na EJA, implicando em uma construção que pode assumir características autoritárias e burocratizadas de uma educação para jovens e adultos. Outra importante característica presente nessa concepção é uma abordagem individualista dos processos de aprendizagem.

É fundamental ressaltar que não estou negando a importância da certificação como representativo instrumento institucional dos sistemas educativos, dotada de indiscutíveis valores sociais e simbólicos. A “lógica do atalho” pode ser considerada herdeira de concepções pedagógicas de educação de adultos que se fundamentavam em princípios ligados à uma tradição antropológica que limitava à percepção valorativa da cultura ao que era produzido e consumido pelos estratos dominantes da sociedade, ou seja, circunscrita à denominada “cultura erudita”. As camadas populares eram percebidas como despossuídas dos conhecimentos necessários para alicerçar a construção de um país livre do atraso representado por um povo que, do ponto de vista das elites, seria desprovido de “formas superiores de cultura” (FÁVERO, 2003). Verificava-se um paradigma de educação que objetivava a domesticação das consciências para adaptá-las ao mundo. Nesse sentido, a atuação dos professores, numa concepção nutricionista de conhecimento, estaria reduzida ao monologismo de práticas educativas nas quais são efetuados depósitos de conhecimentos nos educandos. “[...] Palavras sem relação com o mundo, com a experiência existencial dos alfabetizandos, tornam-se vazias, sem significado, limitando o seu poder de expressão, de criatividade, de reflexão” (SOUZA, 2001, p.105-106). Além dessa característica de considerar o educando como um indivíduo incapaz de participar de diálogos com os educadores, as experiências trazidas pelos sujeitos eram, e ainda são, pouco valorizadas. Outra característica da “EJA na lógica do atalho” está na concepção de uma educação para a apropriação de um “mínimo” de conteúdos. Nesse sentido, essa tendência predominante também poderia ser denominada “a lógica do pouco para quem é pouco”; com a apropriação desse mínimo, haveria a concretização do objetivo principal dessa concepção, ou seja, os indivíduos receberiam a almejada certificação, cumprindo o Estado a sua obrigação de fornecer a “habilitação” para que possam competir por posições subordinadas no mercado de trabalho. Na minha experiência como professor da EJA, rememorando os primeiros anos de trabalho no PEJA, quando discutíamos as dificuldades de aprendizagem de alguns alunos, eram recorrentes os discursos que afirmavam que “não devíamos nos preocupar muito, pois o objetivo maior do PEJA e daqueles alunos era a certificação”.

Embora discordasse radicalmente do sentido destes enunciados, é inevitável admitir que em muitos momentos a minha atuação como professor dessa modalidade de educação também compartilhei desta perspectiva, sobretudo nos momentos de avaliação de alguns alunos quando, embora não tivesse plena convicção sobre as suas conquistas cognitivas, optava pela aprovação. Considerava nessas ocasiões que as dificuldades de aprendizagem resultavam dos limites materiais e humanos da escola, não sendo justo penalizar os alunos. Acompanhava esse raciocínio o entendimento sobre a inquestionável importância da obtenção do certificado de conclusão do Ensino Fundamental pelos alunos do PEJA. Não existe dúvida quanto o valor social dos certificados, mas limitar os processos formativos ao objetivo da certificação é bastante questionável do ponto de vista pedagógico e político. Essa limitação corrobora, porém, uma série de práticas que foram “naturalizadas”, não somente no PEJA, mas em toda rede pública de educação. É compreensível que alguns docentes adotem tal perspectiva não como opção, mas como uma imposição. Para obter uma remuneração suficiente diante das necessidades de sobrevivência são obrigados a submeterem-se a excessivas jornadas de trabalho; ao lecionarem na EJA, muitos estão na sua terceira jornada de trabalho em sala de aula. Temos nesse ponto uma interessante questão para um aprofundamento investigativo. Nesse sentido, a possível solução advogada pelos docentes que adotam tal perspectiva para atenuar as dificuldades dos alunos da EJA estaria no aligeiramento, na redução dos conteúdos e na simplificação das avaliações para facilitar ao máximo a permanência e a aprovação, o que concomitantemente também facilitaria seu trabalho na EJA. Podemos perceber a presença, nessas concepções, de elementos ideológicos do conservadorismo populista que considera os sujeitos que procuram a EJA, quando muito, apenas como vítimas ingênuas e passivas de uma série de injustiças sociais. Persiste entre docentes e discentes da EJA uma concepção restrita sobre os seus sujeitos e suas experiências, percebendo-os como aqueles que “não estudaram no tempo certo”, indicando a crença de que existiria uma época “certa” para aprendizagem. Situando-os em uma posição de inferioridade não apenas no que tange à estratificação social, mas também os percebendo, de alguma forma, numa perspectiva anti-democrática e com lamentáveis traços de teorias racialistas, como pessoas “essencialmente” inferiores.

Embora saiba que toda enunciação textual – escrita ou oral – tem caráter apreciativo e integra o “contexto do processo ideológico” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p.101), com a inevitável presença de valores indicativos de algum tipo de concordância ou discordância, não pretendo arrogantemente estabelecer julgamentos morais sobre as ações desses diferentes atores sociais. Essas descrições e reflexões não são uma tentativa de culpabilização dos educadores, muito menos uma vitimização dos alunos. São muito mais uma afirmação da consciência da nossa incompletude (FREIRE, 2006) explicitando a confiança de que coletivamente os sujeitos podem transformar a realidade. Diante da permanência de precárias condições de trabalho e remuneração, muitos professores são obrigados a cumprir jornadas de trabalho incompatíveis com as exigências requeridas para a construção de práticas educativas com a necessária qualidade. Dessa forma, a adoção da “lógica do atalho” por alguns professores da EJA objetiva facilitar não apenas a trajetória escolar dos alunos, mas, sobretudo, seus próprios trabalhos. Igualmente, é necessário perceber os limites impostos pelos processos formativos relacionados com a preparação profissional dos docentes. Não se pode exigir o desenvolvimento de trabalhos pedagógicos que possibilitem a construção de uma consciência histórica, se aqueles de que deveriam dinamizar este processo não vivenciaram processos educativos capazes de ter efetuado previamente esta construção. Para concluir a crítica a concepção da “EJA na lógica do atalho” é imprescindível afirmar que mesmo nos limites do modo de produção capitalista, somente haverá redução das desigualdades socioeconômicas se houver a universalização da educação de forma efetiva e real. Conforme assinalava Florestan Fernandes, emérito defensor da escola pública, sobre necessidade da constituição de uma educação pública de caráter popular: Democratizar o ensino não significa apenas expandir a rede de escolas, mantendo os padrões elitistas e o privilégio social. O ensino precisa ser democrático na sua estrutura, na mentalidade dominante, nas relações pedagógicas e nos produtos dos processos educacionais. (FERNANDES apud GADOTTI, 1994, p.1-2) EJA como direito mutilado.

Na concepção “A EJA como direito mutilado” as experiências culturais dos alunos da EJA são consideradas nos processos educativos, todavia em uma perspectiva de certificação para a inserção subordinada no mercado, mantendo-se o paradigma da dualidade (SAVIANI, 2007) do sistema educativo. O foco da ação educativa ao considerar as especificidades dos indivíduos começa a constituir uma educação de jovens e adultos. Podemos identificar nessa outra perspectiva para a EJA muitas semelhanças com a concepção da “lógica do atalho”. No entanto, a existência de algumas significativas diferenças torna possível a construção desta segunda tendência predominante: “a EJA como direito mutilado”. Nessa concepção, além da finalidade da certificação são consideradas as experiências culturais vivenciadas pelos jovens e adultos. Todavia, os objetivos dessa educação estão vinculados, restritivamente, guardando alguma semelhança com a concepção anterior, com as demandas da preparação de mão-de-obra para atender às necessidades de reprodução da força de trabalho, em funções subordinadas ou de menor qualificação. Não pretendi estabelecer juízos de valor sobre alguns depoimentos dos sujeitos pesquisados, procurando interpretá-los a partir dos deslocamentos exigidos àqueles que investigam a realidade social. Percebe-se a efetiva importância que a certificação propiciada pelo PEJA pode ter para trabalhadores precarizados e que sobrevivem com remunerações indignas. Evidentemente, diante das inúmeras dificuldades relacionadas com as mais imediatas necessidades de sobrevivência, a possibilidade de inserção subordinada no mercado de trabalho representa significativo ganho econômico, social e simbólico para milhões de trabalhadores que convivem com as incertezas do trabalho autônomo informal. A principal diferença da “EJA como direito mutilado” em relação ao tipo anterior está no reconhecimento da identidade dos jovens e adultos trabalhadores na EJA. Este reconhecimento influencia na adoção de fundamentos epistemológicos, que conduzem à ponderação do valor das experiências e da cultura dos educandos no planejamento e desenvolvimento das práticas pedagógicas, podendo significar a construção no espaço escolar de ambientes mais favoráveis aos processos de aprendizagem.

No entanto, estas mudanças nas práticas pedagógicas que partem do reconhecimento da identidade do aluno trabalhador e dos adquiridos experienciais (CANÁRIO, 2006) não significam, necessariamente, a efetivação de processos educativos que objetivam a autonomia, a emancipação e a transformação social. Os limites das práticas conservadoras não são superados se estiverem subordinados aos imperativos da racionalidade econômicadominante, situando-se no âmbito do Modelo Econômico Produtivo de educação de pessoas adultas (FERNANDEZ, 2006). Neste sentido, é possível afirmar que em conformidade com os interesses dominantes na organização societária capitalista, prevalece para a classe trabalhadora uma formação unidimensional e individualizante. 

Os processos educativos escolares são efetuados nos estreitos limites da preparação da “mão-de-obra”, para suprir as necessidades do capital, distanciando-se das perspectivas que possibilitariam uma educação omnilateral (SAVIANI, 2007). Percebemos a permanência de vínculos relativos à teoria do capital humano, todavia, não mais em sintonia com o modelo de regulação fordista de acumulação de capital, que acenava com as teses do pleno emprego. Encontramos a teoria do capital humano reconfigurada e adaptada ao modelo atual de acumulação de capital, no qual o desemprego constitui um elemento estrutural do sistema capital e as desigualdades socioeconômicas entre indivíduos e nações são estruturais e estruturantes. Assim, efetua-se uma continuidade à tradição do pensamento liberal-conservador que estabelece unicamente o indivíduo como o âmago de todas as possibilidades do êxito ou do fracasso social, ocultando-se as implicações sociais presentes na constituição do próprio indivíduo. EJA, desafios da construção coletiva Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão. Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo. (FREIRE, 2006, p.58 e 78) Nas concepções descritas até aqui, a EJA dificilmente ultrapassa os limites de práticas caracterizadas pela negação das diversidades e de validação das desigualdades. Nessas limitadas perspectivas, a EJA constitui-se como forte obstáculo para a apropriação dos conhecimentos socialmente produzidos pelo trabalho humano, quando se restringe aos processos de certificação burocratizados, ou de apropriação mais equânime das riquezas materiais socialmente produzidas, quando oculta a dimensão política das suas práticas pedagógicas.

Diversamente, é inquestionável o potencial transformador representado pelos processos formativos plenamente dialógicos que se direcionam para a conquista de conhecimentos não comprometidos com a reprodução conformista e conformada da velha ordem fundamentada na desigualdade, mas com as infinitas possibilidades que a imaginação criativa pode conceber como novos mundos prenhes de utopias possíveis. Rejeitando-se, assim, os valores presentes nas expressões ideológicas hegemônicas (GRAMSCI, 2004). Vislumbro a construção coletiva de práticas pedagógicas efetivamente democráticas que objetivam a criação de uma educação com os jovens e adultos para a formação de subjetividades críticas capazes de atuar na transformação da realidade. Sendo assim, devemos neste ponto formular algumas questões. A primeira delas: seria possível garantir, tendo em vista a sua importância como instrumento social e simbólico, a necessária certificação, não abrindo mão das potencialidades presentes na educação escolar? Uma segunda questão, de maior complexidade, poderia ser formulada da seguinte maneira: o modelo de educação que considera as especificidades do aluno jovem e adulto relacionado com a aprendizagem de competências como diálogo e a comunicação para trabalhar em equipes poderia ser apropriado em benefício dos interesses contra-hegemônicos? Este modelo, proposto pelos interesses econômicos da atual configuração capitalista, já não necessita mais do trabalhador silencioso, obediente e condicionado no automatismo das linhas de montagem, mas passou a requerer processos formativos para o desenvolvimento das capacidades de imaginação e crítica para resolução imediata de problemas. Seria possível que as “[...] competências e capacidades dialógicas não se instrumentalizassem exclusivamente ao serviço de uma maior competitividade” (FERNÁNDEZ, 2006, p.83), sendo revertidas para fortalecer processos cooperativos e solidários, direcionando-se não para a satisfação de interesses da lógica econômica individualista, mas para a formação de individualidades comprometidas com a ampliação dos interesses do bem-estar coletivo?
Podemos ainda considerar a pertinência de uma terceira questão: como podemos reverter concepções, e também a auto-percepção, explicitada no habitus (BOURDIEU, 2007) dos jovens e adultos trabalhadores da EJA, como elementos passivos, como sefossem objetos nos processos educativos escolares, engendrando formas realmente participativas que envolvam todos os sujeitos presentes na EJA? Uma das grandes dificuldades dos docentes da EJA encontra-se em conseguir elaborar, coletivamente, com os alunos, planejamentos para a efetivação dos processos formativos, pois ainda persistem concepções redutoras e empobrecidas sobre eles (DAYRELL, 1992). Precisamos estar atentos para que não sejam reproduzidas nas práticas pedagógicas este imaginário que nega o protagonismo dos sujeitos da EJA. É necessária a construção de uma concepção de classe trabalhadora que considere os seus dinamismos, distanciando-se de concepções rígidas e estáticas, características de algumas visões estruturalistas. A consciência do trabalhador explorado não surge, mecanicamente, do seu pertencimento à classe trabalhadora; a sua condição efetiva na sociedade e na economia revela-se pelas experiências e vivências dos conflitos do cotidiano. Thompson (1987) formula uma pertinente crítica à visão da classe social como categoria generalizante e totalizante, que implica em uma uniformização e indiferença diante da diversidade das práticas culturais dos trabalhadores, com suas falas, seus movimentos, suas singularidades, enfim, das inúmeras dinâmicas que possuem potencialidades transformadoras. Dessa maneira, a EJA construída coletivamente, rejeitando as desigualdades, valorizando e respeitando as diferenças, a partir das possibilidades oferecidas pelas contradições presentes na sociedade capitalista, superaria os imperativos estabelecidos pelas classes dominantes na educação. A superação dos paradigmas do ensino burguês é um desafio enfrentado pelos educadores e pesquisadores que assumem o compromisso ético e político na autoria de propostas que alicercem ações no horizonte da construção de outros mundos possíveis. O desenvolvimento nos diferentes processos educativos de habitus que permitam a compreensão solidária dos “outros” pelos deslocamentos (ou “descentramentos”) dos sujeitos de suas posições pessoais, constituem possibilidades concretas de combate ao individualismo da ideologia burguesa. Considero que a EJA construída a partir dos paradigmas mais radicais da democracia tem o poder de fortalecer o que Bakhtin / Volochínov (2006, p.119) denominaram a “atividade mental do nós”. A riqueza e complexidade do mundo interior do sujeito – construído a partir das relações sociais exteriores – é diretamente proporcional ao seu enraizamento social.


A atividade mental do nós não é uma atividade de caráter primitivo, gregário: é uma atividade diferenciada. Melhor ainda, a diferenciação ideológica, o crescimento do grau de consciência são diretamente proporcionais à firmeza e à estabilidade da orientação social. Quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será o seu mundo interior. (BAKHTIN / VOLOCHÍNOV, 2006, p. 119, grifo no original) A denominada “atividade mental do eu”, segundo pesquisadores russos, aproxima-se da reação fisiológica animal, inscrevendo-se no âmbito das reações biológicas instintivas. O individualismo ou a “atividade mental para si” não se confunde com a espécie de atividade mental anterior: O individualismo é uma forma ideológica particular da atividade mental do nós da classe burguesa (encontra-se um tipo análogo na classe feudal aristocrática). A atividade mental do tipo individualista caracteriza-se por uma orientação social sólida e afirmada. Não é do interior, do mais profundo da personalidade que se tira a confiança individualista em si, a consciência do próprio valor, mas do exterior; trata-se de explicitação ideológica do meu status social, da defesa pela lei e por toda estrutura da sociedade de um bastião objetivo, a minha posição econômica individual. (BAKHTIN / VOLOCHÍNOV, 2006, p. 121, grifos no original) É possível vislumbrar a existência de diferentes potencialidades de elaboração ideológica nos processos formativos na EJA. Na proporção que esses processos educativos favoreçam maior enraizamento social, constituir-se-ão de forma mais frequente e consolidada em expressões da “atividade mental do nós”. Sendo assim, as necessidades e desejos originados da “atividade mental do eu” – que estão ligados mais diretamente aos fatores biológicos – poderão ser percebidos na sua dimensão histórica e superados pela percepção articulada da realidade capaz de gerar a participação consciente nos processos políticos de transformação das estruturas sócio-econômicas.
A compreensão pelos sujeitos da EJA que suas dificuldades e sofrimentos são muito mais a expressão de aspectos coletivos comuns, relacionados aos mecanismos estruturais de dominação e exploração entre as classes sociais do que resultantes de aspectos limitados às suas individualidades têm enorme potencial de resistência para a transformação social. “[...] É aí que se encontra o terreno mais favorável para um desenvolvimento nítido e ideologicamente bem formado da atividade mental” (BAKHTIN / VOLOCHÍNOV, 2006,p. 120). 

Sendo assim, a noção de “classe em si” cederia espaço na percepção dos sujeitos para a consolidação da noção de “classe para si”, podendo as potencialidades libertadoras de processos educativos dessa estirpe ultrapassar, exponencialmente, os limites dos espaços escolares. 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 

BAKHTIN, Mikhail. / VOLOCHÍNOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. 

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. CANÁRIO, Rui. A educação em Portugal (1986-2006). Alguns contributos de investigação. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, 2006. 

DAYRELL, Juarez. Educação do aluno-trabalhador: uma abordagem alternativa. Educação Revista, nº15, junho de 1992, p.21-29. 

FÁVERO, Osmar. Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos no Brasil de 1947 a 1966. In: Revista Cultural, Novembro de 2003, p.4-19, 2003. 

FERNÁNDEZ, Florentino S. Raízes históricas dos modelos actuais de educação de adultas. Cadernos Sísifo 2. Lisboa: Universidade de Lisboa – EDUCA/ Unidade de I&D em Ciências da Educação, 2006.

 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

 

GADOTTI, Moacir. Escola Pública Popular: Educação popular e políticas públicas no Brasil, 1994.
Disponível em: <http://www.paulofreire.org/Moacir_Gadotti/Artigos/Portugues/Educaçao_Popular_e_ EJA/Escola_Public_Pop_1994.pdf> Acesso em: 24 de agosto de 2007. 

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v.2. Edição e tradução Carlos Nelson Coutinho, co-edição: Luís Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. 

MILETO, Luís F.M. “No mesmo barco, dando força, um ajuda o outro a não desistir” – Estratégias e trajetórias de permanência na Educação de Jovens e Adultos. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, UFF, 2009. 

SAVIANI, Demerval. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista Brasileira de Educação v.12 nº 34. p.152-165, 2007.

SOUZA, Ana I.(Org.). Paulo Freire – vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2001. 

THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária. V.I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ____________________ . Costumes em comum. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

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